Eu olho para aquele corpo inerte, sem vida, e não acredito. Ainda pouco ele se mexia. Agora, nenhum movimento. O peito não se movia. Era como se ele tivesse perdido a coragem para respirar. Estava morto. A voz do médico ainda chega aos meus ouvidos me dando a notícia que mãe nenhuma deveria escutar: seu filho está morto.
Eu choro. Dói tanto. E não é uma dor que vem grande e vai diminuindo. Não há nenhum analgésico que vai aliviar. Ao contrário: ela chega com muita intensidade e, quando você acha que não tem como ficar maior, ela cresce, aumenta, se expande. A dor de botar pra fora, agora vem em sentido contrário. E a sensação que se tem é a de que o canal do amor aberto pela passagem daquela criança através das tuas entranhas, fizesse o caminho contrário e o amor voltasse todo pra dentro de você. E ele não cabe mais lá dentro. Como é que você coloca pra dentro um filho que já saiu? Mas você tem que colocar. E agora, eu pensei, o que eu faço com todo esse amor? Tá sobrando. E amor de sobra causa tantos problemas quanto amor que falta.
Não adianta ninguém vir falar que você deve pegar esse amor e colocar em outro lugar. Aquele amor veio junto com o DNA da pessoa que morreu. Só será compatível com aquela pessoa. Fica ainda muito mais difícil quando a pessoa morta é uma criança. Porque a criança ainda não teve tempo de apresentar comportamentos e traços de personalidade próprios, o que acomodaria o amor através de uma vida trilhada. E fica insuportável quando a pessoa morta é um bebê. Aquela coisinha frágil que vem às nossas mãos só nos pede carinho, afeto e cuidado. E qualquer fêmea do reino animal, uma mãe, quando olha para seu filhote recém nascido, avança em direção às possíveis ameaças à sua cria e defende o ameaçado com unhas e dentes. Somos puro instinto. Não há camada de verniz colocada sobre a crosta humana que seja capaz de disfarçar o instinto de defesa da cria. Amor recém nascido apenas apresenta o cordão vital. Ele jorra com toda a força inerente ao nascimento. Não possui válvulas de controle de quantidade. Não é como o rio que possui uma nascente e vai crescendo pelo caminho. Ele vaza pelo seio materno. Não há cerca que consiga detê-lo. Todas as represas são arrebentadas.
Quando você percebe a carne da tua carne entrando num sepulcro, a vontade que temos é de ir junto. Não fosse o instinto de preservação animal, acho que as mães seriam os únicos seres de nossa espécie capazes de baixar o sepulcro junto com um filho. Queremos colocá-lo nos braços e fazer o movimento natural do acalanto.
Nesse momento, meus olhos só puderam se enxergar nos olhos de Maria, a mãe de Jesus. A cena do filme "A Paixão de Cristo", de Mel Gibson, consegue retratar com muita fidelidade e sensibilidade a dor de segurar nos braços o filho morto. Nessa fração de segundo, nenhuma mulher no mundo será capaz de ser consolada. Não há coadjuvantes nessa história. Somos eu e meu filho os únicos protagonistas. Portanto, todas as outras pessoas que estiverem em nossa órbita, deveriam apenas nos permitir chorar. Quando muito, podem chorar conosco. Mas abraços e palavras são absolutamente dispensáveis.
Hoje, através do conhecimento que adquiri no meu processo de cura interior, me percebo consagrada no fogo e no sangue.
Não houve nenhum outro personagem bíblico que tivesse maior poder de superação que Maria. Retire dessa mulher todo o contexto divinal. Perceba Maria apenas como mulher de sua época, casada e mãe de muitos filhos. Cada um com sua característica pessoal de personalidade. Lavando, passando, cozinhando e tecendo. Cuidando dos afazeres da vida como qualquer uma de nós. Muito pobre, mulher de um carpinteiro, devia ter que auxiliar José no sustento familiar. Devia ter que receber um ou outro comprador que aparecesse em sua casa para encomendar um móvel justamente na hora em que José havia ido visitar algum fornecedor ou freguês. Uma mulher como tantas de nós. Mãe solteira do primogênito. Carregava dentro de si a culpa de ver o marido prover o sustento do filho de Deus. Uma história absolutamente atual, que se passou há mais de dois mil anos atrás.
Maria devia sofrer quando o filho mais velho entrou na adolescência e começou a questionar toda uma postura religiosa que se aplicava no dia-a-dia. Ele não questionava Deus. Ele trazia uma leitura e interpretação totalmente nova sobre a imagem Divina. Em sendo o Filho de Deus o próprio Deus encarnado, Ele se fez humano a fim de se apresentar para um mundo por Ele criado, mas que o enxergava de forma absolutamente distorcida.
E lá estava Maria, ouvindo seu filho dar uma interpretação completamente nova do Divino. Questionando tudo o que havia sido ensinado para ela através de dogmas e doutrinas milenares porque podia perceber que aquilo que seu filho falava fazia muito mais sentido. Ela sabia que, mais cedo ou mais tarde algo de ruim aconteceria ao seu filho. Seria o resultado das escolhas que Ele havia feito ao fazer o relógio girar no sentido anti-horário. A morte sempre foi o caminho natural de todos os mártires que ousaram questionar o sistema. Quem não se encaixa, até os dias de hoje, é excluído, exilado e morto, tanto físico quanto moralmente. A história do Cristo só sobreviveu porque era a história do próprio Deus. Caso contrário, seria apenas mais um a ter a cabeça decepada, como aconteceu com João Batista.
Mulheres são seres humanos como quaisquer outros. Mas mulheres que passam pela experiência de ter um filho morto nos braços, são a exceção do processo. Nós não somos a regra. Podemos interceder pelos outros porque possuímos uma visão mais dilatada da dor humana. Recebemos de Deus uma marca que vai nos permitir intervir em qualquer processo humano. Somos merecedoras do respeito e devemos lutar para sermos respeitadas. Uma palavra nossa, quando dita através do olhar de quem viveu completamente a perda, tem poder com os homens e, acima de tudo, tem poder com Deus. Pagamos um preço tão alto que nenhum outro ser consegue se ver em nosso lugar. Somos mais que Abraão. Deus provou a nossa fé tirando o que para nós era o mais precioso. Por isso mãe de filho morto, chore seu filho, sinta a dor mais profunda que um ser humano pode conceber. Depois disso, lembre-se do que foi dito pelo Cristo para Maria: "- Mãe, eis aí o teu filho." Erga-se e vá ser mãe de toda a humanidade. Ao fazer isso, aquele amor que voltou para dentro de você, fluirá em sua plenitude. Porque você estará sacramentada e sacrificada no fogo mais intenso e batizada na água mais pura. E esse fogo e essa água terão como propósito único curar todas as dores do mundo.
Seria muita infantilidade minha, me considerar capaz de definir e explicar o amor. Nem mesmo o amor que sinto. Deixo isso a cargo dos poetas. Fernando Pessoa disse com muita propriedade que "... Dizem que finjo ou minto, tudo que escrevo, não. Eu simplesmente sinto com a imaginação, não uso o coração. Sentir, sinta quem lê."
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