SAINDO DO SEPULCRO:
Logo após a morte do meu filho, mergulhei no trabalho, procurando não pensar em mais nada.
Um dia, ao chegar em casa, meu avô me deu a notícia de uma mulher que eu havia conhecido na maternidade cujo bebê nascera no mesmo dia que o meu, havia telefonado completamente alucinada. Desde o dia da revisão pós-parto, nunca mais havíamos nos falado. Meu avô falou que ela contara que seu filho havia morrido de uma infecção.
Passadas algumas semanas, o neto de uma vizinha de minha mãe, morreu vítima de uma pneumonia mal curada aos onze meses de idade.
Fiz um concurso público e ingressei no quadro de pessoal de uma indústria com cerca de dois mil empregados. Num lugar tão grande, é natural uma grande quantidade de dependentes dos empregados, em sua maioria filhos. Pronto, lá estava eu de novo envolvida nessa história de mães e filhos. E não demorou muito para eu me ver envolvida em outras histórias de filhos mortos. A filha de um teve uma febre, foi pro hospital e, aos vinte anos, morreu. O filho do outro estava numa festa de quinze anos, reclamou com um motoqueiro que havia passado com a moto sobre seu pé, levou um tiro e aos dezoito anos morreu. O filho da monitora foi fazer compras num supermercado, sofreu um infarto no volante, bateu com o carro no poste e, aos vinte e um anos morreu. A filha de um outro amigo, que no nascimento teve falta de oxigênio no cérebro, lutou muito mas, aos dezesseis anos, morreu. O filho de outro amigo, cujo irmão gêmeo morreu ainda no ventre da mãe e contaminou o seu sangue, depois de dezessete anos de muita luta, morreu. A neta da minha madrinha, mãe de um menino lindo que, com ano e meio de idade, contraiu uma pneumonia e morreu. O filho da minha vizinha, criado com muito sacrifício, pertencente a uma família de trabalhadores e, ele mesmo foi trabalhador, aos dezessete anos saiu de casa para passear, quando a mãe viu, chegou a notícia de que ele havia participado de um assalto e, após uma perseguição policial, morreu. Agora, chega a notícia da morte da Marcela. Minha mãe, teve o primeiro filho que morreu. Minha irmã teve a primeira filha que morreu. O irmão do meu pai, teve o primeiro filho, que morreu. Meu primeiro filho morreu.
Foi aí que me veio a tomada de consciência de minha missão nessa história. Eu não era a única e nem seria a última. Mas eu tinha que entender o porquê de estar participando de um processo que teria que ser vivido.
Foi no momento da morte do meu filho que saí do cronos e peguei aquele acontecimento que não coube no tempo e entrei no kairós. Por isso o telefonema para Cláudia era tão dolorido para mim. Cada vez que eu recebia a notícia de um filho morto, eu revivia a dor da perda do meu filho. Eu havia ficado paralisada naquele instante e nunca mais tinha saído do lugar. Não me movia, fiquei parada, estática. Nunca pude perceber que naqueles dezesseis anos, eu tive muitas oportunidades de transformar a minha dor. Num egoísmo absurdo, eu permiti que uma morte se desdobrasse em muitas mortes.
Eu tinha que ter um olhar de mãe, uma voz de mãe e um colo de mãe para todas essas mães que perderam seus filhos. Mas para ajudá-las, eu tive que passar por uma cegueira física. Tive que sair da superfície e mergulhar no mais profundo da minha alma.
Iniciar um processo de cura é tão dolorido quanto o processo da dor. Com muitas reservas olhei ainda mais uma vez para o corpo do meu filho morto, abri a porta do sepulcro onde havia entrado junto com ele e olhei para fora. Recebi uma espécie de ponta-pé no peito. Parecia que aquele tumor que estava no meu cérebro havia arrebentado. Doía tudo - física e emocionalmente. Deus me implodiu. Depois me deu todas as ferramentas que eu precisava para me reconstruir.
Na verdade, vivi a mesma experiência vivida por Zaqueu. Curiosa, subi numa árvore para assistir Deus passar. Mas minha curiosidade era verdadeira. Algumas luzes já haviam sido acesas na minha mente.
Eu já havia percebido, no meu contexto familiar, que muitos circos são armados para nos apresentar um Deus distorcido, cujos gestos, vícios e hábitos são acentuados segundo a imagem e semelhança de cada indivíduo que o apresenta. Muita besteira é falada. "Papai do Céu" está sempre pronto para nos castigar por um ou outro comportamento errado. Os espíritos só nos ajudam em alguma necessidade se nós dermos outra coisa em troca. Rituais mágicos, oráculos e adivinhações. Deus vingativo, punitivo e proibitivo. Deus ilusionista, voluntarioso e egoísta. Deus de show business.
Só que eu queria aprender de Deus. Eu queria encontrar Deus. Subi na árvore na tentativa de ver Deus. Mas aí o contrário aconteceu: do outro lado da porta do sepulcro, eu fui vista por Jesus. E Ele parou, enxergou em meus olhos a predisposição e o interesse verdadeiro. Quando Jesus olhou para mim, Ele me fez um convite: "DESCE DA ÁRVORE PORQUE HOJE EU VOU FICAR NA TUA CASA". E quando se olha nos olhos de Jesus, o amor acontece. Não havia justiça naquele olhar - apenas misericórdia. Eu não enxerguei condenação naquele olhar. Eu enxerguei redenção. E não me restou muito mais a fazer do que dar um passo em direção a Ele e descer da árvore. Imediatamente a verdade veio pra fora. Como Zaqueu, eu acolhi a redenção e me propus a reparar tudo de errado que estava vivendo. Muitas vezes, escuto de outras pessoas o mesmo comentário que Zaqueu escutou: como Ele vai ficar na casa de uma pecadora? Não me importo com o cinismo, a ironia e a falta de fé dos outros. Eu não me envergonho do que fui. Apenas me arrependo do que fiz no passado e do tanto de tempo que desperdicei. O que as outras pessoas pensam não faz a menor diferença para mim.
Acredito que Deus está me preparando para outras mortes que se aproximam. Agora mesmo, enquanto escrevo, me chega a notícia da morte do filho único de uma amiga. Menino bonito, criado entre nós. Tinha dois empregos. Com o dinheirinho suado, comprou uma motocicleta. Não foi acostumado a beber. Um dia, saiu com outro amigo e ingeriu álcool. Dirigiu tão desorientado, que foi de encontro a uma carreta numa estrada. Numa única vez em que saiu dos trilhos por uma imaturidade, morreu. E deixou morte por todos os lados: pais, família e amigos. Estão todos mortos interiormente. Ao receber a notícia, vou ao encontro da mãe que ainda não sabe da morte do filho. Entrego meu terço, a abraço e digo: não estou aqui para rezar pela cura de seu filho. Estou aqui para abraçar você. A vejo sair para receber a pior notícia de sua vida. Agora, passados oito dias, irei ao seu encontro. Terei que ajudá-la a viver o processo dessa dor. É minha missão. Por isso, tiro a sandália dos meus pés pois caminharei sob um coração santo.
Eu não posso mais virar as costas e fingir que nada aconteceu. Estou comprometida demais. Não vou me permitir ter preconceitos diante dos seres humanos. Tanto o coração da mãe da bebê quanto o coração da mãe do assaltante, são territórios santos, cujos solos têm que ser respeitados. A dor da mãe do assassino não é menor que a dor da mãe do santo.
O tal padre-cantor / cantor-padre disse em uma de suas homilias que, se ele pudesse pedir a Deus um dom, seria o dom de ressuscitar os filhos mortos. É seu padre, seu dom está em ressuscitar as mães dos filhos mortos.
Humano demais
Padre Fábio de Melo
Eu fico tentando compreender
o que nos teus olhos pôde ver
Aquela mulher na multidão
Que já condenada acreditou
Que ainda havia o que fazer
que ainda restara algum valor
E ao se prender em teu olhar
por certo haveria de vencer
o que nos teus olhos pôde ver
Aquela mulher na multidão
Que já condenada acreditou
Que ainda havia o que fazer
que ainda restara algum valor
E ao se prender em teu olhar
por certo haveria de vencer
E assim fizeste a vida retornar aos olhos dela
E quem antes condenava se percebe pecador
Teu amor desconcertante
força que conserta o mundo
Eu confesso não saber compreender
E quem antes condenava se percebe pecador
Teu amor desconcertante
força que conserta o mundo
Eu confesso não saber compreender
Sou humano demais pra compreender
humano demais pra entender
Este jeito que escolheste de amar quem não merece
Sou humano demais pra compreender
humano demais pra entender
Que aqueles que escolheste e tomaste pela mão
Geralmente eu não os quero do meu lado
humano demais pra entender
Este jeito que escolheste de amar quem não merece
Sou humano demais pra compreender
humano demais pra entender
Que aqueles que escolheste e tomaste pela mão
Geralmente eu não os quero do meu lado
Eu fico surpreso ao ver-te assim
trocando os santos por Zaqueu
E tantos doutores por Simão
alguns sacerdotes por Mateus
E, mesmo na cruz, em meio a dor
Um gesto revela quem tu és
Te tomas amigo do ladrão
só pra lhe roubar o coração
trocando os santos por Zaqueu
E tantos doutores por Simão
alguns sacerdotes por Mateus
E, mesmo na cruz, em meio a dor
Um gesto revela quem tu és
Te tomas amigo do ladrão
só pra lhe roubar o coração
E assim foste o contrário, o avesso do avesso
E por mais que eu me esforce
Não sei bem se te conheço
Tu enxergas o profundo, Eu insisto em ver a margem
Quando vês o coração, Eu vejo a imagem
E por mais que eu me esforce
Não sei bem se te conheço
Tu enxergas o profundo, Eu insisto em ver a margem
Quando vês o coração, Eu vejo a imagem
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